quinta-feira, 16 de setembro de 2010




  Brasil Campeão
De pé, ó vítimas da fome!
 
Para a Unesco, os pobres brasileiros
são os mais criativos do planeta

Marilza Bigio
Arte de Vladimir sobre foto de Tadeu Bianconi
Continuação da matéria 

Presente do lixo


Outra história interessante é a do baiano Avalcir Pereira Bernardo, de 48 anos. Quando desembarcou em Vitória, há cinco anos, trazia na bagagem nada mais que uma panela de pressão, uma coberta e um balde de plástico. “Hoje, um caminhão não carrega todas as minhas coisas”, diz, sem disfarçar o orgulho de um vencedor. E aponta um dos armários de cozinha de sua casa, abarrotado de panelas de pressão – 14 delas – e toda a mobília do singelo barraco de 6m x 6,10m, construído por ele mesmo com pedaços de madeira catados na rua e uma única parede de tijolos, no bairro São Francisco, em Jacaraípe, município da Serra. Todos os dias, ele empurra seu carrinho dali até o bairro Jardim da Penha, onde faz seu trabalho, um percurso de 28 quilômetros.

Por toda a mobília, entenda-se aquelas coisas básicas para um lar: camas (duas de casal e uma de solteiro), poltronas (duas de dois lugares), cômodas (duas, de três e quatro gavetas), guarda-roupas (dois), armário na sala, relógio de parede, tapetes, cortinas, enfeites diversos e, claro, fogão (de seis bocas), geladeira e televisão, indispensáveis. Tirando a TV preto e branco, que comprou de segunda mão, com suados R$ 200, os demais objetos da casa – absolutamente tudo – são sobras do que a sociedade não quer mais. Incluam-se aí desde o urso de pelúcia preferido da filha Renata às suas inúmeras bonecas; o pisca-pisca de Natal; o radinho de pilha ASM/FM; as dezenas de copos e canecos, e até o relógio de pulso dourado e o anel escandaloso no anular esquerdo (à guisa de aliança de casamento).

Baiano – é assim que é conhecido – diz que seu supermercado são as ruas do bairro, sua área de atuação no projeto Coleta Seletiva – Comunidade Catadores do Jardim da Penha, uma iniciativa da Pastoral Social da Igreja Católica, apoiada pela prefeitura de Vitória.

É desse bairro de classe média de Vitória que vieram os dois objetos de maior valor na casa do Baiano: a geladeira e o fogão de seis bocas. A geladeira Frigidaire, quase impossível sonho de consumo, escapou de terminar num ferro-velho: “A dona já conhecia meu trabalho como catador e quando comprou uma geladeira nova perguntou se eu queria ficar com a velha, senão ela ia vender para um ferro-velho. Aceitei na hora, mas tive que carregar o trambolho no carrinho-de-catar-coisas, com a ajuda do meu cunhado, por 28 quilômetros. Mas agora tenho água geladinha...”

Da mesma fonte veio a pia de mármore, praticamente intacta. O fogão de seis bocas, orgulho de Baiano e sua esposa, também foi levado assim, a pé. Verdadeiro mimo de uma cozinha simples, sem azulejos, o fogão repousa tranqüilo em um canto, protegido por uma rica toalha bordada a mão, mais um presente das sobras do Jardim da Penha.

Reciclagem e auto-estima

É impressionante como quase tudo que chamamos de lixo é reutilizável. Cerca de 30% dos materiais coletados podem ser reciclados e outros 35% podem ser transformados em adubo orgânico. Nos recicláveis, incluem-se papelão, papel misto, papel branco, cobre, metal, aço, latas de alumínio, baterias de aparelhos eletrônicos, plásticos, garrafas pet (de refrigerantes) e vidro. Mas ainda não há uma cultura fortemente estabelecida de separar o lixo em reciclável e orgânico, em cada casa, para facilitar a coleta e a reutilização dos materiais. Ninguém quer saber do lixo e muito menos daqueles que vivem dele. Mas no planeta onde não há mais lugar para tanta coisa que se joga fora, ironicamente é esse exército de excluídos que mais tem trabalhado para livrar a humanidade do lixo que produz – e que equivale, em Vitória, a um quilo de lixo por pessoa/dia.

Anônimos e de certa forma desprezados, os burros-sem-rabo (apelido tradicional dos que empurram carrinhos de carga), garrafeiros e catadores, são de uma importância incrível para a sociedade. Se não fossem eles, o Brasil não estaria liderando as estatísticas de reciclagem do alumínio (quase 70% no ano passado), e os nossos aterros, lixões e vazadouros estariam ainda mais sobrecarregados.




“De fato, o trabalho dos catadores reduz o custo da coleta de lixo pela prefeitura de Vitória”, reconhece o subsecretário de Incentivo ao Trabalho, Lino Campos Gomes. Recentemente, a prefeitura conseguiu identificar 57 pessoas vivendo da catação na capital, segundo o subsecretário. Como a coleta geralmente é realizada em família, esse número pode até triplicar. O coordenador da Pastoral Social da Paróquia de São Francisco de Assis, do Jardim da Penha, João Gaspar Schlosser, lembra que um levantamento realizado pela Pastoral, em 88, identificou 400 famílias sobrevivendo do que encontravam no lixo para vender. Sozinho, um catador carrega até 300 quilos de material reciclável, e Vitória chega a produzir mensalmente 20 toneladas de material reciclável, somente com a coleta dos 14 catadores associados ao projeto Coleta Seletiva, naquele bairro. Ano passado, esse pequeno grupo comercializou 861 toneladas de recicláveis, dinheiro suficiente para cobrir diversas despesas, inclusive o salário dos catadores, e ainda obter um lucro de R$ 1.587. Os catadores recebem por produção, e o ganho pode variar até, em média, R$ 400. Mas para chegar a esse valor é preciso suar muito: só para se ter idéia, um quilo de jornal velho é vendido a dois centavos.

A maior barreira para quem trabalha com essas pessoas, como o gerente da Coleta Seletiva em Vitória, Ricardo Batan, não está na inclusão dos catadores na sociedade como trabalhadores formais, mas sim em sua baixa auto-estima. “É difícil trabalhar com o ser humano, quando ele está em seu último estágio na sociedade. Recuperar a auto-estima dessas pessoas é a nossa maior dificuldade”, avalia Ricardo, para quem a realidade do catador que era alcoólatra, dormia nas ruas e não tinha documentos está mudando. “O trabalho deles está virando uma atividade comercial, um negócio rentável”, aposta. Fazê-los trabalhar em cooperativa é outra dificuldade – é só ver como o Orígio, catador independente, se orgulha de ter Deus como patrão.


Melhor sem patrão

Essa ojeriza que o brasileiro de maneira geral demonstra ter à figura do patrão, essa aversão ao tipo de relacionamento entre patrão e empregado, acaba por tornar compensador o trabalho independente, mesmo que o mais humilde. “Ser o próprio patrão” é o mais ardente desejo de grande parte dos trabalhadores nesta terra campeã. Foi essa a motivação de José Raimundo Pereira Garcia e Valda Mendes de Oliveira, um casal que há cinco anos vende cocadas e doces na praia de Itaparica, em Vila Velha.

Zé era pedreiro, sempre correndo atrás de serviço; Vanda ralava fazendo o serviço que aparecesse, e o que mais aparecia era faxina. Até que os dois resolveram começar a fazer cocadas e vender na praia. Isso foi há cinco anos, e os dois não querem saber de outro trabalho. Segundo Vanda, na época o serviço em obras, para o Zé, estava muito raro, e os dois juntos viviam com um salário mínimo, em Guarapari, onde moram até hoje. “Aquela situação não estava de acordo com nossos objetivos”, diz Vanda, “e resolvemos fazer cocadas e vender aqui em Itaparica, que enche de turistas no verão”. José Raimundo Pereira Garcia e Valda Mendes de Oliveira (foto) trocaram os aborrecimentos com os patrões pela liberdade do trabalho por conta própria.

“Se não der certo, a gente pára”, era o que o casal pensava. Mas o primeiro fim de semana foi bom, o segundo melhor, e eles ficaram animados. Hoje, eles já têm uma cultura mercadológica de fazer inveja a muito comerciante, pois, segundo eles mesmos, sentiram “a necessidade de diversificar a oferta, incluindo outros doces, como pé-de-moleque e bolo de aipim”. É com essa atividade que conseguem dar escola e boa alimentação aos três filhos, Tarciano Dark, de 10 anos, Tatiana, de 6, e Gabriel, de 4. Casal moderno, sem preconceitos, quem vai para o fogão é ele, porque os dois viram, com a experiência do dia-a-dia, que Vanda é melhor para as vendas – e também porque assim sobra um tempo durante a semana para ela vender roupas também. Zé acorda às três da madrugada, às sextas, sábados e domingos, e trabalha no fogão, fazendo os doces, por cerca de três a quatro horas. “É muito trabalhoso, por causa da nossa variedade e da qualidade, pois tudo o que oferecemos é feito com leite condensado. Fazemos bolo de aipim, doce de jaca, de abóbora, de abacaxi e de goiaba. Inovamos com as cocadas sabor maracujá e abacaxi”, diz Zé. Esse foi o jeito que eles encontraram para servir àqueles fregueses que sempre pedem “um de cada”. “Quando pediam assim, a gente tinha só dois ou três tipos de cocadas, mas agora quem pedir um de cada vai levar seis, sete doces”, comenta Vanda com ar esperto.
E o faturamento? Nesta época de baixa temporada, com as praias meio vazias, eles fazem cerca de R$ 250 a R$ 300 por fim de semana. No verão, a renda dobra: “Aí é que dá para aumentar um pouco a casa, comprar algum aparelho que a gente precise, dar roupas para a nossa criançada...”.

Doces e verduras

Salgadinhos que desmancham na boca, empadinhas leves com recheio bem temperado, coxinhas com catupiry e um pastel de forno maravilhoso são a especialidade de Ana Braga Ribeiro. “Aprendi a fazer aos 28 anos, e lá se vão mais 17. Não dá para fazer outra coisa mais”, diz Ana. Ela aprendeu com dona Chica, de Guarapari, e vendia nas praias de lá, mas agora vem nos fins de semana para a praia de Itaparica, principalmente no verão, quando há mais gente na orla de Vila Velha, porque, segundo ela, Guarapari fica muito cheia e tem gente demais vendendo coisas na praia. 


Ana Braga Ribeiro (foto) já vende salgadinhos há 17 anos.

“Quando comecei, era divorciada e tinha que sustentar meus filhos mais velhos, Josiane, hoje com 21 anos, e José Ari, que tem 20. Foi uma época de dureza, eu não tinha nenhum estudo, como iria arrumar emprego?” Depois, ela casou com um sargento da PM, com quem vive até hoje, e teve a Talita, hoje com 14 anos. A vontade de vencer é a tônica na vida dessas pessoas, e Ana não fica atrás. Além de vender seus quitutes na praia, ela faz salgadinhos para festas de casamento e aniversário, tem muitos clientes fixos.

“No inverno, só com a praia não dá para viver, e tenho que vender também em lojas, para o pessoal que já é meu cliente. Mas, no verão, chego a tirar R$ 2 mil livres por mês, no Carnaval – que dura aqui uns sete dias – chego a fazer entre R$ 100 e R$ 150 por dia”. E a maneira de gastar esse dinheirinho extra é a mesma para todas essas pessoas: a casa, o sacrossanto refúgio onde cada um deles é rei. “A gente investe para ter tudo dentro de casa, ou fazer uma reforma, sempre o que ganhamos no verão melhora a nossa vida no lar, que eu acho que é a grande paixão do brasileiro. Todo mundo quer ter sua casa arrumadinha”.Não ter patrão foi também a motivação de Josué de Souza Moura, que mora em Campo Grande, Cariacica, e traz da Ceasa, todos os dias, as verduras que os donos de quiosque e moradores da orla de Vila Velha consomem. Há 15 anos ele faz o mesmo trajeto, diariamente: da Ceasa, em Kombi fretada, para a praia. Às vezes começa pelo Coqueiral de Itaparica, às vezes faz o contrário, e começa da Praia da Costa. Percorre três praias, mais de 12 quilômetros, a pé, carregando seu carrinho de mão cheio de verduras. “Eu não nasci para ser pau-mandado. Oitenta por cento dos patrões não são bons e nada como poder fazer cada um seu próprio dia, se quiser pega mais cedo ou larga mais tarde, não ter horário fixo é uma benção”, diz. Na verdade, Josué tem pouco estudo, e empregar-se foi ficando cada vez mais difícil. Ele fez só até a quinta série primária, e nem completou.

Tem 32 anos, e se considera realizado: “Receber ordens é horrível, e acho que tive sorte, pois desde menino sempre vendi verduras e mesmo assim tenho até poupança”. E mais: cansou de pagar INSS, ficou meio aborrecido com tanto rombo na previdência e resolveu não pagar mais, adquirindo então seu plano de saúde particular. Criou seu filho William, de 16 anos, com esse seu trabalho, e não quer saber de outra vida: “No inverno, faço cerca de R$ 500 por mês, no verão, faço R$ 1.000, mas qualquer valor é melhor do que ter de trabalhar para os outros”, desabafa.
Setembro/2001 - Nº19
Século DiárioO Jornal do Espírito Santo na Internet.
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Como e de que modo sobrevivem os pobres brasileiros (e capixabas, particularmente), contemplados pela Unesco com o título de campeões mundiais de criatividade.
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